
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
Um gramofone na Benedito

Caruso e Quintana
Esconderijos do Tempo
Pela corola do gramofone
o Caruso cantava Una Furtiva Lagrima
e ninguém levava a mal aquele tom fanhoso,
talvez porque todo o mundo sabia que ele já estava morto.
Se alguém espiasse pela goela do gramofone,
poderia ver como era o Outro Mundo,
mas ninguém olhava porque devia ser muito, muito longe
a ponto de estragar o som daquela maneira.
E o pobre do Caruso cantava que te cantava afogado pelas águas do tempo
e por isso a sua voz era ainda mais pungente:
não é brinquedo estar morto e continuar cantando.
Caruso, eu estou pensando estas coisas não aqui e agora
mas naquele Café que tu sabes, lá por volta de 1923...
Também não é brinquedo continuar vivo e ficar falando para o que passou.
Quintana, Mario. In: Antologia Poética. RJ, Ediouro,
Coleção Prestígio, 4ª edição, pág. 83.
A função do leitor/1

Quando Lucia Peláez era pequena, leu um romance escondida. Leu aos pedaços, noite após noite, ocultando o livro debaixo do travesseiro. Lucia tinha roubado o romance da biblioteca de cedro onde seu tio guardava os livros preferidos. Muito caminhou Lucia, enquanto passavam-se os anos. Na busca de fantasmas caminhou pelos rochedos sobre o rio Antioquia, e na busca de gente caminhou pelas ruas das cidades violentas. Muito caminhou Lucia, e ao longo de seu caminhar ia sempre acompanhada pelos ecos daquelas vozes distantes que ela tinha escutado, com seus olhos, na infância. Lucia não tornou a ler aquele livro. Não o reconheceria mais. O livro cresceu tanto dentro dela que agora é outro, agora é dela.
Galeano, Eduardo. O Livro dos Abraços. Porto Alegre: L&PM, 2000
Eduardo Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Jornalista e escritor, é autor de vários livros traduzidos em mais de vinte línguas. Nesse livro ele mostra que pequenos momentos se abraçam e mexem com nossa vida, nossa memória. Não poderia escolher outro texto porque foram tantos os livros que cresceram dentro de mim...
Fonte: http://www.themorningnews.org/archives/galleries/the_dalai_labrador_19962008/(google)
Imagem: Eduardo Galeano e Dalai Labrador (google)