quarta-feira, 31 de março de 2010

Encontros


Apenas mais uma tarde de domingo? Talvez.
Um compromisso a mais? São tantos nos todos os dias; apenas mais um.
Mas hoje, já passados alguns dias depois daquela tarde, vejo-me a observar as imagens registradas e nelas tantos gestos.
As cores muitas.
Os semblantes vários.
Os semelhantes no esforço de se fazerem únicos.
A criança faz surgir o desejo de carícias maternas; o adolescente chega e aninha-se na confraternização, e eu penso:
– Como é que ele vê este acontecimento? Nem faz tanto tempo era o dia dele.
No entanto vem crescendo e tenho certeza, também sonha.
Os adultos acarinhando-se com o firme propósito de tornar os acontecimentos uma festa.
Até que, chegada a hora de voltar cada uma para seu canto, sob a chuva fina caindo do céu da cidade, aliam-se, protegem-se.
As companheiras de nossa maior viagem.


Imagem: Leda Lucas
Crônica: Leda Lucas
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domingo, 28 de março de 2010

Territórios de ser

o homem só
com tudo

Imagem: Leda Lucas
Poema: Leda Lucas

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quinta-feira, 25 de março de 2010

CUIDADO DEGRAU


Quando criança, eu costumava pensar em uma escada enorme que me levava até o céu, e ela subia... Subia pelas montanhas de minha terra apoiada em nuvens leves; e diáfana.
Quando eu lá chegava, sentado confortavelmente numa poltrona branca guardando a entrada de um grande portal um ancião de barbas e cabelos muito brancos, com um sorriso na face, que achava que era São Pedro. Tinha um molho de chave na mão esquerda. Depois, encontrava-me com Deus, com um rosto severo, sereno. Anjos passeavam pelo jardim de algodão cor-de-rosa a tocar harpas; infinitas.
Cresci.
Trilhei alguns caminhos.
... Agora tudo é sólido; concreto.
Mas a alma leve e transparente ainda busca alturas a fim de alcançar cores, formas, linhas, palavras.
Tudo expressão.
E eu subo, atenta e cuidadosa, cada um dos tantos degraus - um após o outro - a cada dia, e sempre levando comigo um livro, uma câmera fotográfica (digital).
Vai saber...
Acho que viver é esquisito e sinto saudades.

Azul da Infância


O olhar infantil procurava alturas

a ver o alto da escada invisível

apoiada nos tufos brancos

da nuvem alta


Queria pela escada

entrar no céu

ser recebida em caloroso

silêncio e bondade


Os degraus da escada

subiam subiam subiam

sumiam


E, então, o frio do pântano

do brejo de água de mina

na planta dos pés

assoalhava o devaneio

no azul da infância



Imagem: Leda Lucas
Textos: Leda Lucas
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segunda-feira, 22 de março de 2010

Início de outono


Era um domingo, talvez especial.
A vida em casa transcorria segura, serena.
As gatas dormiam manhosamente o calor dos dias.
Meu filho sonava a casa com delícias de ouvir MÚSICA.
Meu companheiro segurava seu braço que doía no escorrer de seu sangue nas veias.
Eu, como sempre, perdida no tanto de sonhos e gostosuras de e por fazer ...
Juntou nuvem no céu de montão; a contar que dia 19 foi o dia da "enchente das goiabas", porém por aqui a chuva muita foi antes: janeiro, fevereiro...
O sol teve de se esconder atrás do chumbo das nuvens. As árvores debaixo da janela de casa nem balançou tanto. Mas um hora a água despencou do alto juntamente com o sol do outro lado do céu.
Corri para fechar a janela do quarto, mas ali na frente da rede de proteção da janela de meu quarto encontrava-se o final do arco-íris; e lá um tesouro?


Imagem: Leda Lucas
Texto: Leda Lucas

domingo, 21 de março de 2010

À Constança


Cuitelinho
Composição: Paulo Vanzolini / Antônio Xandó

Cheguei na beira do porto
Onde as ondas se espáia
As garça dá meia volta
E senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai
Ai quando eu vim de minha terra
Despedi da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes bataia, ai, ai
A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai
...

E mais: Um artigo doce, musical, e pleno de nossas melhores lembranças das fundações do repertório de MPB, por Luis Nassif.


Pena Branca e Xavantinho
A primeira vez que ouvi Pena Branca e Xavantinho creio ter sido no programa “Vitrine” da TV Cultura de São Paulo. Vou lhe contar, poucas vezes na vida uma interpretação me pegou daquele jeito, de ficar suspenso no ar sem conseguir respirar, como a emoção da primeira namorada. Talvez algumas interpretações de Jacob, as guarânias de Luiz Vieira, canções de Caymmi, as primeiras músicas que ouvi de Chico, Gil e Caetano, sei lá, e obviamente Cascatinha e Inhana.
Era isso, a emoção era a mesma da primeira audição de Cascatinha e Inhana, quando tinha meus dez anos e descobri em velhos discos 78 na casa de meu tio Léo. Ficava horas ouvindo “Meu Primeiro Amor”, “Índia”, “Luar do Sertão”, com aquela composição de vozes estranhamente simétricas, com o Cascatinha e a Inhana cantando uma oitava acima.
Apesar de periodicamente ouvir o programa “Alvorada Sertaneja” na rádio Cultura, apresentado pelo Compadre Zé Tomé e pelo Compadre Mesquita (meu tio Léo, carioquíssimo), as músicas caipira e sertaneja não me impressionavam muito. Não digo os clássicos, “Linda Flor do Ipê”, “Festa Junina”, “Chuá Chuá”, as obras de Valdemar Henrique, Joubert de Carvalho, J. Cascata e Leonel Azedo, Sá Pereira, o imenso Luiz Peixoto, João Pernambuco e outros, além dos paulistas Raul Torres, Capitão Furtado e Inezita Barroso, mas aquela música mais tosca de dupla caipira mesmo.
Nos meus tempos de moleque, havia uma distinção nítida entre a música caipira autêntica e a sertaneja, de funda influência mexicana e paraguaia. Minha casa ficava em frente o largo do São Benedito, onde tinha a quermesse anual mais concorrida de Poços. Todo início de maio, ficávamos nós lá, ouvindo “Pombinha Branca”, “Coração de Mãe” e outras menos votadas.
Mesmo depois que vim para São Paulo, toda manhã ia da Vila Maria à USP ouvindo o programa de Moreno e Moreninho na rádio Nove de Julho ou Marconi, não me lembro bem, e gostava muito do Zico e Zeca, de quem conhecia dois ou três clássicos. Gostava também de algumas músicas de Moreno e Moreninho, especialmente as congadas do sul de Minas, e adorava a viola caipira de Cafezal. Mas, no geral, era uma música muito pobre, esganiçada, que não me tocava a alma, mesmo quando interpretada pela mais popular dupla caipira de muitas décadas, Tonico e Tinoco.
Mas Cascatinha e Inhana, nunca ouvi coisa mais bonita. Aliás, até sozinha Inhana era imbatível. Há uns três anos saiu um CD póstumo da dupla, onde Inhana interpreta “Carinhoso”. Daquele período, não houve cantora romântica brasileira de voz mais bonita e de interpretação mais pungente, com exceção de Elizeth Cardoso e, talvez, de Alaide Costa e Nana Caymmi, na geração seguinte.
Pois Pena Branca e Xavantinho me despertavam as mesmas sensações. Ali no “Vitrine”, cantando clássicos de Milton Nascimento, Chico e Caetano, Pena Branca e Xavantinho não eram gente, eram anjos de ébano tecendo loas ao Criador. Xavantinho, aliás, tinha voz gêmea de Milton, o maior intérprete da MPB moderna.
Depois daquele dia, não houve show da dupla que eu não fosse atrás, que nem um fã despudorado. Nem tive pejo de pedir seus autógrafos em um desses shows e ruborizei como uma donzela quando escreveram meu nome, sem me perguntar qual era. Meus ídolos me conheciam! Até hoje minhas filhas mais velhas caçoam dessa demonstração de macaquismo explícito.
Todo mês entrava na Musical Box, ali na praça Vilaboim, e a primeira pergunta era se havia algum lançamento novo da dupla. Não perdi um. Eles formavam a linha de frente da música MPB rural de primeira linha, ao lado de Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Sérgio Reis e do gênio Almir Satter.
A morte de Xavantinho foi tão triste quanto a de Inhana, muitos anos atrás. Naquele fim de semana, o som de casa ficou ligado direto nos seus CDs, especialmente em “Chuá Chuá”, de Sá Pereira, a música que me lembra minha mãe.
Lamento apenas que dona Tereza tenha partido antes que a dupla ficasse conhecida. Certamente teria ensinado todo o repertório de Pena Branca e Xavantinho aos seus netos, da mesma maneira que ensinou o de Cascatinha e Inhana aos seus filhos. Ensinaria “Cuitelinho”, recolhida por Vanzolini, “Velho Berrante”, do Adauto Santos, o hino a Mazaroppi, do Garfunkel, as músicas do Milton, Chico e Caetano que, na voz da dupla, perdiam o caráter moderno e ganhavam o tom intemporal, que provém das profundezas do tempo e do Brasil. E repetiria com aquela entonação pungente, o tipo de voz tremida que meu avô Issa usava quando cantava “Velho Realejo” para minha mãe criança, e que compõe o conjunto de valores intangíveis, que caracteriza a raça Brasil.


http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2007/07/22/pena-branca-e-xavantinho


Luis Nassif
Introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Vencedor do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em 2003, 2005 e 2008, em eleição direta da categoria. Prêmio iBest de Melhor Blog de Política em eleição popular e da Academia iBest.

Áudio: http://letras.terra.com.br/pena-branca-e-xavantinho/48101/
Vídeo: YouTube.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Gosto de Sol


Milton Nascimento
Composição: Milton Nascimento/Ronaldo Bastos

Alguém que vi de passagem

Numa cidade estrangeira

Lembrou os sonhos que eu tinha

E esqueci sobre a mesa

Como uma pêra se esquece

Dormindo numa fruteira

Como adormece o rio

Sonhando na carne da pêra

O sol na sombra se esquece

Dormindo numa cadeira

Alguém sorriu de passagem

Numa cidade estrangeira

Lembrou o riso que eu tinha

E esqueci entre os dentes

Como uma pêra se esquece

Sonhando numa fruteira

Fonte: http://letras.terra.com.br/milton-nascimento/307376/

Esta canção é originariamente um poema de Carlos Drummond de Andrade e agora motivada

por uma imagem de acontecimento de vida e beleza a um canto da sala de visitas, compartilho-a.

A imagem do áudio é a da memorável capa do Clube da Esquina.

Muito há que se dizer ainda.

Vídeo: YouTube

quarta-feira, 17 de março de 2010

Estou me a vir


"(...) Escrevo ao correr das palavras.
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente?
No fundo de tudo há a aleluia.
Este instante é. Você que lê é.
Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere; está ficando escuro. Mais. Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração da treva.
O problema é que na janela de meu quarto há um defeito na cortina. Ela não corre e não se fecha portanto. Então a lua cheia entra toda e vem fosforescer de silêncios o quarto: é horrível.
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço.
Estou de olhos fechados. Sou pura inconsciência. Já cortaram o cordão umbilical: estou solta no universo.
Não penso, mas sinto o it. Com olhos fechados procuro cegamente o peito: leite grosso. Ninguém me ensinou a querer. Mas eu já quero. Fico deitada com olhos abertos a ver o teto. Por dentro é a obscuridade. Um eu que pulsa já se forma. Há girassóis. Há trigo alto. Eu é.
Ouço o ribombo oco do tempo. É o mundo surdamente se formando. Se eu ouço é porque existo antes da formação do tempo. 'Eu sou' é o mundo. Mundo sem tempo. A minha consciência agora é leve e é ar. O ar não tem lugar nem época. O ar é o não-lugar onde tudo vai existir. O que estou escrevendo é música do ar. A formação do mundo. Pouco a pouco se aproxima o que vai ser. O que vai ser já é. O futuro é para frente e para trás e para os lados. O futuro é o que sempre existirá. Mesmo que seja abolido o Tempo? O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser. A trombeta dos anjos-seres ecoa no sem tempo. Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o chão que é terra. O resto é ar e o resto é lento fogo em perpétua mutação. A palavra “perpétua” não existe porque não existe o tempo? Mas existe o ribombo. E a existência minha começa a existir. Começa então o tempo?
Ocorre-me de repente que não é preciso ter ordem para viver. Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço.
Ainda não estou pronta para falar em 'ele' ou 'ela'. Demonstro 'aquilo'. Aquilo é lei universal. Nascimento e morte. Nascimento. Morte. Nascimento e – como uma respiração do mundo.
Eu sou puro it que pulsava ritmadamente. Mas sinto que em breve estarei pronta para falar em ele ou ela. História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It é mole e é ostra e é placenta. Não estou brincando pois não sou sinônimo – sou o próprio nome. Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo. Há o futuro. Que é hoje mesmo.”

(Autora: Clarice Lispector)

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, 4ª ed., ps. 36 a 39.

Fragmento da obra Água Viva, cujo texto é classificado como ficção não pertencendo portanto a nenhum gênero narrativo. Mas sim à Literatura.
Esta obra de Clarice 'caro leitor: não há que lê-la; ou melhor, há que lê-la sim, ao preço de queimar-se.'
Postei este texto porque, para mim, a Literatura é uma veemente forma de resposta às indagações mais fundas do ser humano.
Ela chega, abre as cortinas e queda-se à espera.

Imagem da criança: Google
Imagem da água viva: Leda Lucas


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sexta-feira, 12 de março de 2010

Mistérios Sanguíneos

“Imagine um ser que sangra mas não está ferido. Imagine um ser que sangra mas não morre. Será uma criatura mágica, mística, ou apenas uma mulher? Ou ambas as coisas? Será que tal criatura pode ser 'meramente' mulher? Há aqui um certo mistério a respeito do qual os homens nada sabem e as mulheres devem saber alguma coisa:
Como pode um homem saber o que é a vida de uma mulher?”
Este fragmento de texto foi digitado a partir do primeiro parágrafo do livro A tecelã – Ensaios sobre a Psicologia Feminina Extraídos dos Diários de uma Analista Junguiana, de Barbara Black Koltuv e publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 1997, 12ª ed., p. 11.
O propósito da transcrição do texto é de trazer à luz um pensamento mais profundo para além da pequenez de muitos dos pensamentos e atitudes que temos umas para com as outras; assim como em relação de gênero entre mulher e homem. Está-se buscando somente um que-fazer para nos reintegrarmos em profundidade a fim de resgatar a Liberdade mesmo quando escolhemos o Amor.
No capítulo 8, Criatividade e Realização, a autora começa o ensaio com uma parábola denominada Presentes da Vida, que foi escrita por Olive Schreiner, uma feminista sul-africana, em 1890.
“Eu vi uma mulher que dormia. Em seu sono, ela sonhou que a Vida estava em pé diante dela e segurava um presente em cada mão – numa o Amor, na outra a Liberdade.
E ela disse para a mulher: “Escolha!”
E a mulher esperou muito tempo; então respondeu: “Liberdade!”
E a Vida disse: “Escolheste bem. Se tivesses dito “Amor", eu teria oferecido aquilo que me pediste: e eu te abandonaria e não mais retornaria. Agora chegará o dia em que retornarei. Nesse dia, trarei os dois presentes numa só mão.
Eu ouvi a mulher rir durante o sono.
O sentido da vida que nos força a escolher entre o amor e a liberdade – ou, em termos modernos, uma carreira, uma profissão, um profundo envolvimento com nosso trabalho criativo – tem estado conosco há muitos anos.”
Alguns parágrafos à frente, a autora cita um ensaio de Jung onde ele escreve, em 1927, que
“É função de Eros unir o que Logos dividiu. A mulher de hoje depara-se com uma tremenda tarefa cultural – talvez seja o amanhecer de uma nova era.”


Imagem: Leda Lucas

São Paulo, 12 de março de 2010
Leda Maria Lucas

Super-Homem, a Canção (1979)

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara

É a porção melhor que trago em mim agora

É o que me faz viver

Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera

Ser o verão no apogeu da primavera

E só por ela ser

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um Deus o curso da história

Por causa da mulher

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um deus o curso da história

Por causa da mulher

Fonte: http://letras.terra.com.br/gilberto-gil/46246/ - postado a partir do Google.

A INSPIRAÇÃO

O busto grande, quadris largos, olhos castos, castanhos e sonhadores. Uma vez ou outra exclamava. Disse com ar alegre, aflito, muito rápido como que para que não a ouvissem totalmente:
– Acho que eu não podia ser escritora, sou tão... tão resumida!
Um dia, porém, como escondida de si mesma, teve uma inspiração e anotou no caderno de despesas algumas frases sobre a beleza do Pão de Açúcar. Só algumas palavras, ela era resumida. Muito tempo depois, numa tarde em que estava só, lembrou-se de que escrevera alguma coisa sobre alguma coisa – sobre o Corcovado? Sobre o mar? Só se lembrava de que havia usado as palavras "beleza muito pitoresca". Foi procurar o antigo caderno de despesas.  Por toda a casa. Móvel por móvel. Abria caixas de sapatos na esperança de ter sido secretiva quanto a sua inspiração a ponto de guardar o escrito revelador de sua alma numa caixa de sapatos. Teria sido uma boa ideia. Aos poucos a sufocação crescia, ela passava a mão pela testa – agora era mais do que o caderno de despesas que ela estava procurava, procurava o que a inspiração lhe ditara, vejamos, paciência, procuraremos de novo. O que estaria escrito no caderno? Lembrava-se de que era algo muito espiritual sobre alguma coisa pitoresca. Pitoresco era para ela o máximo. Procuremos, é questão de força de vontade, é questão de ir pegá-lo. Que desastre – sentia imóvel no meio da sala, sem direção, sem saber onde mais procurar – que desastre. A casa calma à tarde. E em alguma parte havia uma coisa escrita, um pensamento íntimo, disso tinha certeza. Desabotoou afogueada a gola da blusa: não achar seria perder alguma coisa muito sua. Não desanime, dizia-se, procure entre os papéis, entre as cartas, entre as raras notícias que lhe mandavam. Ah, raciocinava ilogicamente, tivessem-lhe escrito mais e ela teria onde procurar. Mas sua vida ordenada era exposta, tinha poucos esconderijos, era limpa. O único esconderijo era a sua alma que uma vez se manifestara no caderno de despesas. Mas que felicidade ter móveis, caixas onde encontrar por acaso.
Uma vez ou outra procurava de novo. De vez em quando se lembrava do caderno de despesas num sobressalto de esperança. Até que, depois de alguns anos, um dia ela disse, modesta:
– Quando eu era mais moça, eu escrevia.

Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, ps. 440 e 441.

Crônica: Clarice Lispector
Imagem: Google - material de pesquisa sobre uma artista portuguesa.

terça-feira, 9 de março de 2010

À Rita


Trem das Cores

Composição: Caetano Veloso

A franja na encosta

Cor de laranja

Capim rosa chá

O mel desses olhos luz

Mel de cor ímpar

O ouro ainda não bem verde da serra

A prata do trem

A lua e a estrela

Anel de turquesa

Os átomos todos dançam
Madruga

Reluz neblina

Crianças cor de romã

Entram no vagão

O oliva da nuvem chumbo
Ficando

Pra trás da manhã

E a seda azul do papel

Que envolve a maçã

As casas tão verde e rosa
Que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela
E aquela num tom de azul
Quase inexistente, azul que não há
Azul que é pura memória de algum lugar

Teu cabelo preto

Explícito objeto

Castanhos lábios

Ou pra ser exato

Lábios cor de açaí

E aqui, trem das cores

Sábios projetos:

Tocar na central

E o céu de um azul

Celeste celestial
...
Imagens e música. 
Um universo chamando outro, 
nas múltiplas possibilidades do afago.
Mar. A vila corta
e a horta
coberta de cor.
Haikai: Leda Lucas
Vídeo: YouTube - por rmboemer, em 26 de julho de 2007.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Acaso encontro





Para o dia de todas as mulheres
com o carinho da maravilhosa voz de 
Mônica Salmaso
Beatriz

Olha

Será que ela é moça

Será que ela é triste
Será que é o contrário

Será que é pintura

O rosto da atriz

Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida

Olha

Será que ela é de louça
Será que é de éter

Será que é loucura

Será que é cenário

A casa da atriz

Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida


Sim, me leva pra sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre é por um triz
Aí, diz quantos desastres tem na minha mão

Diz se é perigoso a gente ser feliz

Olha

Será que é uma estrela

Será que é mentira

Será que é comédia

Será que é divina

A vida da atriz


Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem
E se o arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida


Composição: Edu Lobo/Chico Buarque
Fonte: http://letras.terra.com.br/chico-buarque/45115/

Imagem: Leda Lucas
Vídeo: YouTube - postado por Serrazul, em 27 de junho de 2007