domingo, 21 de março de 2010

À Constança


Cuitelinho
Composição: Paulo Vanzolini / Antônio Xandó

Cheguei na beira do porto
Onde as ondas se espáia
As garça dá meia volta
E senta na beira da praia
E o cuitelinho não gosta
Que o botão de rosa caia, ai, ai
Ai quando eu vim de minha terra
Despedi da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso
Dei em terras paraguaia
Lá tinha revolução
Enfrentei fortes bataia, ai, ai
A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai
...

E mais: Um artigo doce, musical, e pleno de nossas melhores lembranças das fundações do repertório de MPB, por Luis Nassif.


Pena Branca e Xavantinho
A primeira vez que ouvi Pena Branca e Xavantinho creio ter sido no programa “Vitrine” da TV Cultura de São Paulo. Vou lhe contar, poucas vezes na vida uma interpretação me pegou daquele jeito, de ficar suspenso no ar sem conseguir respirar, como a emoção da primeira namorada. Talvez algumas interpretações de Jacob, as guarânias de Luiz Vieira, canções de Caymmi, as primeiras músicas que ouvi de Chico, Gil e Caetano, sei lá, e obviamente Cascatinha e Inhana.
Era isso, a emoção era a mesma da primeira audição de Cascatinha e Inhana, quando tinha meus dez anos e descobri em velhos discos 78 na casa de meu tio Léo. Ficava horas ouvindo “Meu Primeiro Amor”, “Índia”, “Luar do Sertão”, com aquela composição de vozes estranhamente simétricas, com o Cascatinha e a Inhana cantando uma oitava acima.
Apesar de periodicamente ouvir o programa “Alvorada Sertaneja” na rádio Cultura, apresentado pelo Compadre Zé Tomé e pelo Compadre Mesquita (meu tio Léo, carioquíssimo), as músicas caipira e sertaneja não me impressionavam muito. Não digo os clássicos, “Linda Flor do Ipê”, “Festa Junina”, “Chuá Chuá”, as obras de Valdemar Henrique, Joubert de Carvalho, J. Cascata e Leonel Azedo, Sá Pereira, o imenso Luiz Peixoto, João Pernambuco e outros, além dos paulistas Raul Torres, Capitão Furtado e Inezita Barroso, mas aquela música mais tosca de dupla caipira mesmo.
Nos meus tempos de moleque, havia uma distinção nítida entre a música caipira autêntica e a sertaneja, de funda influência mexicana e paraguaia. Minha casa ficava em frente o largo do São Benedito, onde tinha a quermesse anual mais concorrida de Poços. Todo início de maio, ficávamos nós lá, ouvindo “Pombinha Branca”, “Coração de Mãe” e outras menos votadas.
Mesmo depois que vim para São Paulo, toda manhã ia da Vila Maria à USP ouvindo o programa de Moreno e Moreninho na rádio Nove de Julho ou Marconi, não me lembro bem, e gostava muito do Zico e Zeca, de quem conhecia dois ou três clássicos. Gostava também de algumas músicas de Moreno e Moreninho, especialmente as congadas do sul de Minas, e adorava a viola caipira de Cafezal. Mas, no geral, era uma música muito pobre, esganiçada, que não me tocava a alma, mesmo quando interpretada pela mais popular dupla caipira de muitas décadas, Tonico e Tinoco.
Mas Cascatinha e Inhana, nunca ouvi coisa mais bonita. Aliás, até sozinha Inhana era imbatível. Há uns três anos saiu um CD póstumo da dupla, onde Inhana interpreta “Carinhoso”. Daquele período, não houve cantora romântica brasileira de voz mais bonita e de interpretação mais pungente, com exceção de Elizeth Cardoso e, talvez, de Alaide Costa e Nana Caymmi, na geração seguinte.
Pois Pena Branca e Xavantinho me despertavam as mesmas sensações. Ali no “Vitrine”, cantando clássicos de Milton Nascimento, Chico e Caetano, Pena Branca e Xavantinho não eram gente, eram anjos de ébano tecendo loas ao Criador. Xavantinho, aliás, tinha voz gêmea de Milton, o maior intérprete da MPB moderna.
Depois daquele dia, não houve show da dupla que eu não fosse atrás, que nem um fã despudorado. Nem tive pejo de pedir seus autógrafos em um desses shows e ruborizei como uma donzela quando escreveram meu nome, sem me perguntar qual era. Meus ídolos me conheciam! Até hoje minhas filhas mais velhas caçoam dessa demonstração de macaquismo explícito.
Todo mês entrava na Musical Box, ali na praça Vilaboim, e a primeira pergunta era se havia algum lançamento novo da dupla. Não perdi um. Eles formavam a linha de frente da música MPB rural de primeira linha, ao lado de Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Sérgio Reis e do gênio Almir Satter.
A morte de Xavantinho foi tão triste quanto a de Inhana, muitos anos atrás. Naquele fim de semana, o som de casa ficou ligado direto nos seus CDs, especialmente em “Chuá Chuá”, de Sá Pereira, a música que me lembra minha mãe.
Lamento apenas que dona Tereza tenha partido antes que a dupla ficasse conhecida. Certamente teria ensinado todo o repertório de Pena Branca e Xavantinho aos seus netos, da mesma maneira que ensinou o de Cascatinha e Inhana aos seus filhos. Ensinaria “Cuitelinho”, recolhida por Vanzolini, “Velho Berrante”, do Adauto Santos, o hino a Mazaroppi, do Garfunkel, as músicas do Milton, Chico e Caetano que, na voz da dupla, perdiam o caráter moderno e ganhavam o tom intemporal, que provém das profundezas do tempo e do Brasil. E repetiria com aquela entonação pungente, o tipo de voz tremida que meu avô Issa usava quando cantava “Velho Realejo” para minha mãe criança, e que compõe o conjunto de valores intangíveis, que caracteriza a raça Brasil.


http://colunistas.ig.com.br/luisnassif/2007/07/22/pena-branca-e-xavantinho


Luis Nassif
Introdutor do jornalismo de serviços e do jornalismo eletrônico no país. Vencedor do Prêmio de Melhor Jornalista de Economia da Imprensa Escrita do site Comunique-se em 2003, 2005 e 2008, em eleição direta da categoria. Prêmio iBest de Melhor Blog de Política em eleição popular e da Academia iBest.

Áudio: http://letras.terra.com.br/pena-branca-e-xavantinho/48101/
Vídeo: YouTube.