quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

RECITA: CASO DO VESTIDO


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE RECITA: CASO DO VESTIDO

Fiz algumas imagens de uma exposição de mini-vestidos, da escola Sigbol numa estação de trem aqui em São Paulo; e estava procurando este poema para postar no blog.
Foi uma alegria encontrá-lo na internet na voz do próprio poeta, em gravação de 1978.

"Nesta gravação de 1978, da Philips, o “itabirano” Carlos Drummond de Andrade recita o poema “Caso do Vestido”.

Mais uma preciosidade do Blog do Gusmão aos seus visitantes."

Imagem (mini-vestido exposto na estação de Trem Parque Primavera, em São Paulo): Leda Lucas


Caso do vestido

(Carlos Drummond de Andrade)


Nossa mãe, o que é aquele


vestido, naquele prego?



Minhas filhas, é o vestido


de uma dona que passou.



Passou quando, nossa mãe?


Era nossa conhecida?



Minhas filhas, boca presa.


Vosso pai evém chegando.



Nossa mãe, dizei depressa


que vestido é esse vestido.



Minhas filhas, mas o corpo


ficou frio e não o veste.


O vestido neste prego,

está morto, sossegado.


Nossa mãe, esse vestido


tanta renda, esse segredo!



Minhas filhas, escutai


palavras de minha boca.



Era uma dona de longe,


vosso pai enamorou-se.



E ficou tão transtornado,


se perdeu tanto de nós,



se afastou de toda vida,


se fechou, se devorou.



chorou no prato de carne,


bebeu, brigou, me bateu,



me deixou com vosso berço,


foi para a dona de longe,



mas a dona não ligou.


Em vão o pai implorou.



Dava apólice, fazenda,


dava carro, dava ouro,



beberia seu sobejo,


lamberia seu sapato.



Mas a dona nem ligou.


Então vosso pai, irado,



me pediu que lhe pedisse,


a essa dona tão perversa,



que tivesse paciência


e fosse dormir com ele...



Nossa mãe, por que chorais?


Nosso lenço vos cedemos.



Minhas filhas, vosso pai


chega ao pátio. Disfarcemos.



Nossa mãe, não escutamos


pisar de pé no degrau.



Minhas filhas, procurei


aquela mulher do demo.



E lhe roguei que aplacasse


de meu marido a vontade.



Eu não amo teu marido,


me falou ela se rindo.



Mas posso ficar com ele


se a senhora fizer gosto,



só para lhe satisfazer,


não por mim, não quero homem.



Olhei para vosso pai,


os olhos dele pediam.



Olhei para a dona ruim,


os olhos dela gozavam.



O seu vestido de renda,


de colo mui devassado,



mais mostrava que escondia


as partes da pecadora.



Eu fiz meu pelo-sinal,


me curvei... disse que sim.



Saí pensando na morte,


mas a morte não chegava.



Andei pelas cinco ruas,


passei ponte, passei rio,



visitei vossos parentes,


não comia, não falava,



tive uma febre terçã,


mas a morte não chegava.



Fiquei fora de perigo,


fiquei de cabeça branca,



perdi meus dentes, meus olhos,


costurei, lavei, fiz doce,



minhas mãos se escalavraram,


meus anéis se dispersaram,



minha corrente de ouro


pagou conta de farmácia.



Vosso pai sumiu no mundo.


O mundo é grande e pequeno.



Um dia a dona soberba


me aparece já sem nada,



pobre, desfeita, mofina,


com sua trouxa na mão.



Dona, me disse baixinho,


não te dou vosso marido,



que não sei onde ele anda.


Mas te dou este vestido,



última peça de luxo


que guardei como lembrança



daquele dia de cobra,


da maior humilhação.



Eu não tinha amor por ele,


ao depois amor pegou.



Mas então ele enjoado


confessou que só gostava



de mim como eu era dantes.


Me joguei a suas plantas,



fiz toda sorte de dengo,


no chão rocei minha cara,



me puxei pelos cabelos,


me lancei na correnteza,



me cortei de canivete,


me atirei no sumidouro,



bebi fel e gasolina,


rezei duzentas novenas,



dona, de nada valeu:


vosso marido sumiu.



Aqui trago minha roupa


que recorda meu malfeito



de ofender dona casada


pisando no seu orgulho.



Recebei esse vestido


e me dai vosso perdão.



Olhei para a cara dela,


quede os olhos cintilantes?



quede graça de sorriso,


quede colo de camélia?



quede aquela cinturinha


delgada como jeitosa?



quede pezinhos calçados


com sandálias de cetim?



Olhei muito para ela,


boca não disse palavra.



Peguei o vestido,

pus
nesse prego da parede.



Ela se foi de mansinho


e já na ponta da estrada



vosso pai aparecia.


Olhou para mim em silêncio,



mal reparou no vestido


e disse apenas: – Mulher,



põe mais um prato na mesa.


Eu fiz, ele se assentou,



comeu, limpou o suor,


era sempre o mesmo homem,



comia meio de lado


e nem estava mais velho.



O barulho da comida


na boca, me acalentava,



me dava uma grande paz,

um sentimento esquisito



de que tudo foi um sonho,


vestido não há... nem nada.



Minhas filhas, eis que ouço


vosso pai subindo a escada.


Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora - 1985, pág. 157.