sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Esta senhora e o café da tarde

Há tempos fiz esta imagem, aqui no bairro onde moro. E desde o primeiro momento vieram recordações felizes dos dias de café da tarde com pão fresquinho e conversas... Guardei-a.
Nestes dias, estou lendo A Volta ao Dia em 80 Mundos - Tomo II - Civilização Brasileira, de Júlio Cortázar e, grata surpresa, encontrei um fragmento do romance Paradiso, de José Lezama Lima que traduziu em palavras meus sentimentos mais profundos.
É um diálogo entre um neto (a personagem Cemí) e sua avó:


"José Cemí dialoga com sua avó:

Vovó, cada dia sinto que mamãe vai se parecendo mais com a senhora. As duas têm o que eu chamaria de um mesmo ritmo interpretado da natureza. Nos últimos tempos, a maioria das pessoas me dão a impressão de que estão encerradas, sem saída. Mas vocês duas parecem ditadas, como se continuassem umas letras que lhes caem nos ouvidos. É só ouvir, seguir um som... Não têm interrupções, quando falam não parecem ficar buscando as palavras. Parecem seguir um ponto, que é o que esclarece tudo. É como se obedecessem, como se tivessem feito uma promessa para que a quantidade de luz não diminua no mundo, todos sabem que vocês fizeram sacrifício, que renunciaram a extensas regiões, diria que até à própria vida, se uma vida maravilhosa não aparecesse em vocês, numa fortuna tal que nós outros não sabemos nem para que existimos, nem como passamos nossos dias, pois só me parece que nos desprendemos da alta esfera de que falam os místicos sem ter encontrado ainda a ilha onde os cervatos e os sentidos saltam.

Mas, meu querido neto Cemí, tu observas tudo isso em tua mãe e em mim porque o teu próprio é captar esse ritmo de crescimento para a natureza. Uma lentidão pouco frequente, a lentidão da natureza, diante da qual tu colocas uma lentidão de observação que é também a natureza. Graças a Deus, essa lentidão, para levar a observação a uma extensão fabulosa, é acompanhada por uma memória hiperbólica. Entre muitos gestos, muitas palavras, muitos sons, depois que os tiveres observado entre o sono e a vigília, saber qual vai acompanhar a memória secularmente. A visita de nossas impressões é de uma rapidez intangível, mas teu dom de observação espera como num teatro onde tem que passar, reaparecer, deixar-se acariciar ou mostrar-se esquivas essas impressões que depois são leves como larvas, mas então tua memória lhe dá uma substância tal como o limo dos começos, tal como uma pedra que recolhesse da sombra do peixe. Falas do ritmo do crescimento da natureza, mas é preciso muita humildade para poder observá-lo, segui-lo e reverenciá-lo. Nisto também observo que tu és da nossa família, a maioria das pessoas interrompem, favorecem o vazio, fazem exclamações, exigências desastradas ou declamam árias fantasmais, mas tu observas esse ritmo que faz da realização, da realização do que desconhecemos, mas que, como tu dizes, nos foi ditado, o signo principal do nosso viver. Fomos ditados, quer dizer, éramos necessários para que a realização de uma voz superior chegasse à margem, sentindo-se em terreno seguro. A rítmica interpretação da voz superior, sem quase intervenção da vontade, quer dizer, uma vontade que já vinha envolvida num destino superior, fazia-nos desfrutar de um impulso que era ao mesmo tempo um esclarecimento..” (p. 493-494).


Julio Cortázar: Volta ao Dia em 80 Mundos (Tomo II). Tradução: Ari Roitman e Paulina Wacht. Editora Civilização Brasileira, 2008, p. 67 e 68.

José Lezama Lima: Paradiso (s/i). p. 493 e 494.


Fiquei muito feliz por ter encontrado este fragmento do romance Paradiso de Lezama Lima, no livro do Cortázar para a minha foto.


Imagem: Leda Lucas


Sinfonia plena



palavras trôpegas
tropicavam no que ardia
– já antigo

nas rugas do concreto
a luz prenhou a flor
da bauínia despregada

letras de ouro
plenas de sinfonia
noturno trinado

Imagem: Leda Lucas
Poema: Leda Lucas