quarta-feira, 14 de julho de 2010

Me nina, mar!

VIII

“Para dar um exemplo concreto de uma psicologia do universo, seguiremos um relato em que o cenário de um lago de montanha cria de certa forma a sua personagem, em que a água profunda e forte, provocada pelo nado, transforma um ser humano em criatura da água – transforma uma mulher em Melusina. Nosso comentário terá por centro um livro de Jacques Audiberti, Carnage.

Só ocasionalmente Audiberti nos oferece imagens de reflexo. Seu devaneio é atraído pela água como se sua imaginação tivesse poderes de hidromancia, seduções de hidrofilia. O sonhador sonha viver na espessura da água. Viverá das imagens do tato. A imaginação nos dará, não mais um além das imagens contempladas, mas um além das alegrias musculares, um além dos poderes do nado. Ao ler as páginas que Jacques Audiberti escreveu num capítulo que traz o título de 'Le lac' (O lago), poderíamos acreditar de início que elas traduzem experiências positivas. Mas cada sensação anotada é ampliada numa imagem. Entramos na região de uma poética do sensível. E, se existe experiência, é de uma verdadeira experiência da imaginação que se deveria falar. A realidade nua amorteceria essa experiência de uma poética do sensível. Portanto, não é preciso ler tais proezas na vida da água referindo-se às nossas experiências, às nossas lembranças; deve-se lê-las imaginativamente, participando da poética das tonalidades musculares. Notaremos de passagem que esses ornamentos psicológicos é que infundem vida estética às meras percepções. Apresentemos primeiro a heroína do mundo das águas.

Audiberti sonha diretamente as forças da natureza. Não tem necessidade de lendas e contos para criar uma Melusina. Enquanto vive em terra, sua Melusina é uma filha da aldeia. Fala e vive como as pessoas da aldeia. Mas o lago a torna só, e tão logo ela se vê sozinha ao pé do lago este se converte num universo. A filha da aldeia entra na água verde, numa água moralmente verde, irmã da substância íntima de Melusina. E ei-la que mergulha: uma espuma se ergue de um abismo, esbranquiçando com mil flores de pilriteiro a intimidade do mundo líquido. A nadadora está agora debaixo das águas: 'Nada mais, doravante, existia – apenas um êxtase de rumor mais azul que tudo no mundo...'

'Um êxtase de rumor mais azul que tudo no mundo': a que registro sensível pertence esta imagem? O psicólogo que decida a respeito. Mas o sonhador de palavras está encantado, pois o devaneio das águas é aqui um devaneio falado. A poética da palavra falada constitui a poética dominante. É necessário dizer e redizer para ouvir tudo o que o poeta diz. Para o ouvido que quer ouvir a voz das águas do mar, que concha não é a palavra rumor!

O escritor continua...

Acabei de ler um maravilhoso livro de Gaston Bachelard. No capítulo VIII – o final – o autor comenta sobre um conto de Jacques Audiberti cuja história tem imagens lindas. Ao lê-lo e relê-lo tive a ideia de fazer a digitação de fragmentos do conto de Jacques Audiberti, que é simplesmente encantador e fazedor de amar demais as palavras, de querê-las próximo do coração. Esta história está contada no capítulo VIII, o último do livro A Poética do Devaneio.

Aguarde a continuação da história.

Imagem: Leda Lucas

Texto: Gaston Bachelard. In: A Poética do Devaneio. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2006, ps. 194 e 195.

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