terça-feira, 24 de agosto de 2010

Herança

Muitos são os legados que nos deixam.
No meu caso, tenho como herança a composição em formas e tintas expressada por minha mãe, da casa que morava em seu coração.
Tive de crescer, mudar de estado, adaptar-me a um outro modo de ser e compor-me. E minha mãe, também.
Veio ao mundo, viveu seus dias com os seus e, principalmente, nos contava da feliz amizade com seu irmão Chico. Das tantas travessuras de meninos do interior. Casou-se com o homem que tornou-se meu pai. Foram felizes e infelizes juntos até o último dia de vida de minha mãe.
Não apaga de minha memória uma das últimas falas que tive com ela:
– Seu pai viajou, e nem me desejou 'Boa sorte!'.
Mas ele nunca foi destas coisas. Nem nunca teve o hábito de saber de alguém indo para o médico... Hospital?! Porém, ele retornou de viagem e dormiu com a sua mulher a derradeira noite, do jeito que ele gostava. Ele nunca podia imaginar ser aquela noite incômoda devido ao desconforto de minha mãe pelas dores, a última da vida deles.
Tomaram juntos o café da manhã! Teve bolo, caseiro, e guardado no fundo do forno.
Vai dizer que viver não é ser sempre surpreendido.
Mas, um pouco antes da inesperada partida, minha mãe, em seu eterno buscar-se, espalhou tintas – algumas, inclusive minhas! – em telas que comprava com seu 'dinheirinho' de aposentada. E contou-se! Pintou sua morada.
Mesmo um pouco desgostosa, porque a casa que ela trazia no coração tinha tanta luz! O telhado não era assim caído! A parede não era assim torta... Nem eram aquelas as plantas que haviam na cerca do curral. O terreiro ficou muito limpo. Faltou a porteira.
O que faltou, minha mãe?! Veja:
A escada para o alpendre.
As portas do porão. Tenho certeza, que um bezerrinho, ao amanhecer, ainda chama por sua mãe debaixo do assoalho. Algumas galinhas, ainda fazem aí seus ninhos. Um galo canta na madrugada. Um cachorro dorme na soleira. Um gato deve passar rápido.
A escada para o terreiro da cozinha. Era maior. Por que dificultar o acesso a espaço tão-nosso amado?!
Sinto falta do forno a lenha, e o azedinho do biscoito de polvilho ainda quente, saboreio agora. O crepitar das brasas. As mesmas que fizeram explodir a lata de soda cáustica que queimou muito sua perna, quando ainda era bem jovem – e já havia providenciado minha chegada –, deixando tantas cicatrizes que pude observar em suas pernas brancas, e na testa. Tenho fascínio pelo fogo! E um medo...
O ora-pro-nóbis ficou atrás da casa, lá para as bandas da cozinha?
O pé de laranja serra d'água da vovó, que fim levou?!
O chuá-chuá da água na bica!
Mas.
Aí está o morro.
Aí estão as árvores de Paratudo!
Nunca vou me esquecer dos dias.

Imagem: Leda Lucas
Texto: Leda Lucas

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