sexta-feira, 16 de abril de 2010

Ana Hatherly - criação múltipla de identidades

Ana Hatherly: meditações sobre a escrita e o ato criador
(entrevista)

Ana Marques Gastão

Ana HatherlyA voz de Ana Hatherly é ampla, profunda, a memória dir-se-ia um «conservatório de combates», «grito inaudível» de um «poeta-pintor que com a própria vida cria a sua arte de ver». As palavras riem, porém, e a abertura ao misterioso possui a inocência da criança perante um universo que se desmorona. Reflexão, rigor, concisão, ironia, coerência e a capacidade de estar à frente do seu tempo marcam a existência de um filósofo-escritor que pensa o injustificável, o desejo, a inadequação amorosa, a incomunicabilidade, o desaparecimento, o invisível. A sua obra acaba de ser distinguida com o prémio de poesia Evelyne Encelot (França)) e com o Hanibal Lucica Sonnet Days (Croácia). Doutorada em Literaturas Hispânicas na Universidade da Califórnia, em Berkeley, catedrática da Universidade Nova de Lisboa e especialista do barroco, Ana Hatherly - que acaba de lançar «O Pavão Negro» (Assírio) e «Itinerários» (Quasi), integrando um ciclo de poemas dedicados ao Brasil -, investiga, há mais de 40 anos, o conceito de escrita, nas suas diversas formas: é poeta, pintora, ficcionista, realizadora, ensaísta, integrando-se na corrente experimentalista dos anos 60. Abriu-se, todavia, a outros caminhos. «O Mestre», «Tisanas», «Eros Frenético», «Anagramático» são obras únicas da literatura portuguesa, bem como é singular a sua exploração da visualidade do texto. No olhar de Ana Hatherly, de um azul vítreo, pode ler-se a visão justa e rigorosa; mas também o fogo se adivinha, contido e um pouco distante, a tragicidade límpida e lúcida, a «loucura do ver» e a não resignação, porque existe uma erótica do andar. Que possuem os escritores, afinal, escreveu Yeats, senão «os seus cegos e estupefactos corações»? [A.M.G.]

AMG - «Não é no espelho que devemos observar-nos. Homens, contemplem-se no papel.» Nestas palavras de Michaux, está uma síntese daquilo que poder ser considerado a sua obra, exploradora do conceito de escrita. Concorda?

AH - A frase tem muito a ver comigo. De certa maneira, pertencemos a uma mesma família, só que Michaux integra a família surrealista e eu não. Vem do automatismo e da droga e do debruçar-se sobre si próprio com o alheamento do real. Eu não venho da droga, do alheamento do real, venho só de dentro, um outro dentro diferente do dele. O meu dentro resulta, pelo menos no trabalho, de uma meditação sobre a escrita e o acto criador. Interessa-me tentar aprofundar o que é o mistério da criatividade. O que se cria, como se cria... Isso está na base do que faço.

AMG - Mas há esse lado da contemplação no papel que traz a contemplação de um vulto. Onde está esse vulto?

AH - Essa a minha relação com o real, não só no sentido do acontecimento, mas do próprio Homem. A confrontação do artista com a pessoa. Quem cria é necessariamente uma pessoa com toda uma história cultural por trás. Ninguém nasce do nada. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade dir-se-ia a descoberta de um lado nunca conhecido, tendo algo que ultrapassa a dimensão normal do humano. Sobre esse mistério, tento debruçar-me. Cada vez que escrevo ou pinto, há sempre uma descoberta.

AMG - Consegue entrelaçar essa ideia da relevância estrutural da escrita - englobando poesia, pintura, cinema -, com a criança que foi Ana Hatherly, de aparência nórdica, mas nascida no norte do país?

AH - Não tive uma infância feliz, foi muito solitária, sem irmãos, sem ninguém da minha idade com quem brincar, numa época em que a educação era muito severa dentro da burguesia. Mais tarde, fiquei muito grata por essa severidade, porque preparou-me para as agruras que vieram. Havia, no entanto, aspectos mágicos. A minha avó, que me educou, contava histórias que ainda hoje sei de cor. Depois vivia-se toda uma tradição cultural da época, muito da região do norte, crescia-se em casa com as criadas, convivia-se com a religião. Existia um conceito do sagrado, do divino e, sobretudo, do ritual. O ritual foi muito importante na minha formação. Lembro-me quando minha avó me levava às igrejas, pelo menos a uma delas, do séc. XVIII, que ainda hoje existe, a Capela das Almas. Aquelas novenas ao fim de tarde no mês de Maio cheias de flores e incenso... Eu via os anjos a dizerem-me adeus com a mão. Tinha alucinações. Na adolescência, recusei esse tipo de conhecimento. Passados anos, reconheci o erro e estou muito grata por me terem dado acesso a essa forma de cultura. Muitos dos meus alunos não a tiveram e são muito mais pobres.

AMG - O que nos leva às suas raízes assentes no barroco. O artista barroco vê - di-lo em «O Ladrão Cristalino» - o invisível, procurando mostrá-lo. Neste dentro-fora, evolui a sua actividade que pensa as palavras, o seu clamor, como diz num dos seus poemas?

AH - É exactamente isso: procuro esse diálogo impossível entre o visível e o invisível. A criatividade passa por aí, ou mesmo a relação com o sagrado, por querer tornar visível o invisível, o que talvez nunca seja totalmente possível. Não se trata necessariamente de querer ver, mas de ver por dentro.

AMG - Tendo em conta que letras e artes se associam numa perspectiva barroca, a escrita não nasce, porém, para si, apenas do jogo intelectual, da subversão pelo riso, pois não? Há distância, rigor, mas dentro de uma tragicidade...

AH - Isso é profundamente verdade. O riso vem do espírito lúdico do barroco, vivi na infância rodeada de formas do barroco, até na casa onde vivíamos. Ainda hoje vivo. Trata-se de uma arte que vai mais longe, embora se pense nela como decorativa, ligada aos palácios, ou seja ao Poder. Quando comecei a conhecer a literatura, apercebi-me disso. O que mais me impressionou foi a inteira dedicação àquilo que se faz, a possibilidade de brincar na profundidade absoluta. Fazendo-o, tocamos a raiz das religiões mais antigas. O próprio zen baseia-se no riso. Mas que espécie de riso? Não o riso sem consequências. Já Freud o explicou. Os barrocos são artistas - seja na pintura, na literatura ou na música -, de um rigor absoluto. Não se pode fazer nenhum jogo sem uma regra muito precisa, porque de outro modo não há jogo, mas dispersão. E o barroco é uma arte do rigor, veja-se Bach.

AMG - O que nos leva às suas raízes musicais...

AH - Estudei música e quis especializar-me em música barroca. Com essa arte aprendi a severidade e o desejo de segurança técnica que me ajudaram em tudo o que faço. Essa disciplina, esse rigor, foram-me incutidos na infância.

AMG - Como se o privilégio de uma estética passasse pela clarificação da continuidade entre temporalidade e eternidade, entre matéria e espírito?

AH - Esse dir-se-ia ser o fundamento do barroco e do meu trabalho. Ao assimilar-se o rigor, está-se livre para brincar ou não. Tudo é jogo, a vida é jogo, no sentido metafísico, na medida em que há uma regra para um desempenho que pode ser em duelo ou não. Vivo na fronteira entre o diálogo e o duelo com tudo. Esse é o lado subversivo do meu trabalho. Estou justamente em duelo pelo extremo rigor da minha vontade de compreender e de exprimir.

AMG - Falou de duelo. Refere-se também às relações de poder entre as pessoas?

AH - Sim, claro, isso também vem do barroco, época que, devido à presença forte da Igreja, à nossa cultura, à tradição ocidental, está cheia de figuras de Poder. Nasci no tempo do salazarismo, aprendi, por isso, quais as consequências funestas de quem enfrenta um poder absoluto. Fui dominada pela rebeldia, pela vontade de me insurgir contra tudo.

AMG - Diz, a certa altura, em «O Pavão Negro» (que, por assim dizer, prolonga «A Idade da Escrita»): «Enlouquecidos pela dor/cobrimo-nos com o barro das palavras.» Escreve, pinta, cria num processo inverso ao da dor?

AH - Paralelo. Não há criação sem dor, pode ter-se mais ou menos consciência disso, dependendo do tipo de profundidade que se atinja ou se procure atingir. O meu trabalho tem uma dimensão metafísica e essa tem de ser necessariamente dolorosa.

AMG - Pensar sobre a natureza da poesia, da música, da arte é, em última análise, colocar questões teológicas ou metafísicas?

AH - Não tanto teológicas, mas metafísicas sim, de certeza.

AMG - Por isso o filtro dos mestres zen na sua obra, aliada a uma tradição do pensamento ocidental?

Ileana MoyaAH - É também uma contradição. Interessei-me, na verdade, pelas religiões orientais, não foi só o budismo, estudei-as cuidadosamente nos anos 60, quando isso era fundamental e surgia como tendência da época. Tratava-se de uma forma de subversão, de contrariar a minha religião profundamente ocidental, católica. Hoje, não sou obrigada a praticar nenhuma, porque reconheço um princípio superior a todas as elas. Esse é o aspecto que me interessa, o divino, o sagrado, desenquadrado do institucional. Aprendi, no entanto, alguma coisa com todas as confissões religiosas.

AMG - D. H. Lawrence disse que é necessário ser terrivelmente religioso para ser artista...

AH - Religioso e erótico. Não há nenhuma religião verdadeiramente desligada do erotismo, acontece no catolicismo, na religião cristã. Vemos isso nos escritos barrocos, sobretudo nos das freiras. Estudei muito a escrita das mulheres. Há um erotismo extraordinário na poesia «a lo divino». São textos deliciosos, sobretudo, os de Soror Maria do Céu, sobre quem fiz a minha tese de doutoramento. Continuo a realizar, nessa área, um trabalho de investigação com ex-alunas minhas já doutoradas: estou a projectar uma grande antologia de poesia barroca temática: começando com as aves, flores, frutos, pedras preciosas, etc..., o que nos levará depois ao contraste entre amor humano e amor divino, presente numa Santa Teresa de Ávila ou num São João da Cruz. Mas há que entender esses textos num sentido elevado. O erotismo é uma das forças da criação. Não há criação sem erotismo.

AMG - Está a falar de um êxtase?

AH - De um profundo empenhamento do corpo e da alma. Essa é a grande criação que nos emocionou ao longo dos tempos. Sem entrega não há criação.

AMG - Acredita, então, numa dimensão sagrada da palavra?

AH - É a sua dimensão autêntica, embora nos esqueçamos dela, até no domínio da fala. A poesia ensinou-me a importância, não só dos valores estéticos, políticos e sociais, mas, sobretudo, dos sagrados. Eu, que passei tantos anos a defender e a praticar a visualidade do texto, chamando a atenção para as palavras escritas como representação de algo, hoje, ao fim de 45 anos de publicação, estou a regressar ao valor oral do poema, para que este volte a adquirir a sua importância original. Não estou a referir-me à fala no diálogo, mas à fala em poesia. Quem escreve para teatro ou cinema sabe o que isso é. Ao sermos obrigados, já secularmente, a ler em voz baixa, o que no passado não se fazia, porque era considerado diabólico - coisa que poucas pessoas sabem -, perdemos uma dimensão do sagrado. Podemos escrever textos para serem lidos em silêncio ou ditos em voz alta. O escritor tem à sua disposição três aspectos fundamentais: a escrita para ser lida, ou ouvida, ou entendida como desenho, representação de um gesto humano, mesmo que seja tipográfico ou no computador. Ainda é a mão humana a funcionar nesses casos. Quando passarmos à fase em que apenas falamos e o computador já escreve, ainda conseguirá impôr-se a força da voz humana. Há toda uma gama que não tem sido entendida e valorizada na sua totalidade. Eu, que pratico a visualidade - a escrita muda -, estou a tentar desenvolver esses aspectos. Estão a vulgarizar-se, no mundo inteiro, os recitais de poesia. Sente-se cada vez mais a importância da voz.

AMG - A que atribui esse fenómeno?

AH - À perda de importância do ser humano como indivíduo. Ver alguém a falar e a dizer é algo muito diferente de vermos essa mesma pessoa num aparelho de televisão. A singularidade individual da voz é aquilo que o distingue, até no plano do sagrado.

AMG - As leituras de Derrida são, no entanto, as de uma teologia zero, do «sempre ausente». Viu desaparecer todos os seus laços afectivos primordiais por meio da morte. Como integra nesse vazio a sua concepção de sagrado?

AH - Com muita dificuldade, mas é preciso aprender e o zen já nos ensinou, como todas as religiões orientais em particular, que a morte tem um estatuto diferente daquele que lhe confere a religião católica. Acreditar na vida para além da morte é um problema que não se conseguiu resolver até agora. O desaparecimento, para mim - e a palavra diz tudo -, é das coisas mais dolorosas que a vida ensina.

AMG - Está também a falar dos mortos-vivos...

AH - Sim, sim, para mim, é a mesma coisa. O mistério do desaparecimento atinge-me da maneira mais profunda. Quando alguém desaparece é indescritível o que se sente. Isto dominou a minha vida toda. Talvez a arte exista para colmatar esse vazio. Criamos porque nos falta alguma coisa. E talvez, por isso, tenha escrito: «Amando muito muito/ficamos sem palavras».

AMG - Numa das suas tisanas (293) escreve: «Então acordo e compreendo que a nossa união nunca se dará porque não é mística nem mítica.» Liga o sagrado à relação com o Outro?

AH - O sagrado é a relação com o Outro, o tal Outro invisível, aquele que nunca se vai encontrar. Não que tenha aparecido, é que nunca chega a aparecer, a não ser que vejamos o sagrado em tudo. Fizeram-no os que cultivam a natureza como representação de Deus, uma das facetas do barroco levada às últimas consequências.

AMG - O sagrado pode passar por um instante, por um rosto?

AH - Obliquamente, sim.

AMG - A ideia de impossibilidade na relação intersubjectiva, particularmente na amorosa, percorre a sua obra, como em «Tisana de preço fantástico». Ou no livro «Rilkeana» e noutros...

AH - Há sempre algo de inatingível. Em «Rilkeana», por exemplo, nas suas variações, não sou capaz de materializar a ideia do anjo. Surge, então, como invenção. Existe uma impossibilidade básica na natureza humana que é sempre uma fracção de qualquer outra coisa. Somos incompletos, não chegamos a atingir, estamos quase a ver e desaparece...

AMG - Funde como ficção e realidade, tendo em atenção essa falta?

AH - A ficção dir-se-ia uma forma de criar um real que não existe. Mesmo os mais materialistas, estão a cobrir-se com o barro das palavras. Porque estas são a representação de uma outra coisa qualquer que não conseguimos representar. A concepção do anjo está na base das «Elegias de Duíno». Mas não é só o que lá está. O que se nota no meu trabalho, particularmente na «Rilkeana», que demorou três anos a criar – só fiz isso e mais nada -, é a possibilidade de aceitar a presença do anjo. Fiz até vários desenhos.. Mas antropomorfizar um anjo é no mínimo um sacrilégio! (risos) Isso tem de ficar noutra zona. O sagrado não é acessível, não se lhe pode pôr a mão. E ainda bem, senão era material.

AMG - Escreve, pelo menos nas «Tisanas», porque algo aconteceu ou acontece, para produzir o acontecer. E noutro tipo de escrita, fá-lo porquê?

AH - Há sempre, no que faço, uma ideia de procura, da origem de qualquer coisa que está no fundo. Quis seguir a carreira musical e fui obrigada a abandoná-la por razões de saúde. Senti uma perda tremenda, um desaparecimento. Essa formação trouxe-me a dimensão do rigor. Quando estive doente, num sanatório da Suiça, o médico disse-me que eu nunca mais iria poder cantar ou tocar, mas aconselhou-me a escrever, que «era mais descansado....» E foi o que fiz.

AMG - Depois veio o experimentalismo... Foi pioneira da poesia experimental. Na sua deriva visual, a erudição sempre acompanhou a produção artística...

AH - Sim, depois entrei para o grupo dos experimentalistas, que reflectia um posicionamento de insubordinação. A minha relação com o Poder foi sempre difícil, tudo o que era subversivo me interessava. Lutar era a posição certa naquela altura, num momento em que, ao nível mundial, surgiam acontecimentos históricos marcantes como os movimentos estudantis dos anos 60, a guerra colonial e a do Vietname, a arte «Pop», a luta das mulheres, a expansão da música rock, etc...

AMG - Como recorda esse período da sua vida?

AH - Como uma época de luta, difícil para todos nós. Eu estava numa fase de recusa de tudo. Havia uma revolta dos jovens, também internacional, e eu empenhei-me profundamente, como faço sempre, tentando aproximar a arte da vida. Paguei um preço elevadíssimo, fui perseguida. Não me importo. Agora acabou, outros que o façam. Não se pode ficar eternamente à frente, e cedo me apercebi de que, por exemplo, o concretismo era redutor. Não existe só uma vanguarda, mas vanguardas sucessivas ao longo dos tempos. Ainda há quem pratique hoje formas do experimentalismo dos anos 60, mas esses são retardatários. A sociedade evolui, as gerações sucedem-se, é preciso dar lugar. Faço outras coisas, tenho outras coisas para fazer.

AMG - Como reagiu este país retrógrado a essa pequena revolução?

AH - Muito mal, muito mal, porque nós queríamos romper com o imobilismo. No prefácio que faço à antologia da minha poesia experimental, «Um Calculador de Improbabilidades», falo disso, incluindo até polémicas que surgiram então, nomeadamente no «Diário de Lisboa», entre outros jornais. O ambiente foi adverso a essa experimentação. Éramos poucos, mas havia uma razão de ser para o movimento: tratava-se de uma tomada de consciência internacional e nacional; contra um «statu quo» intolerável, nos anos 60/70, até ao 25 de Abril. Existia, portanto, uma necessária demonstração da nossa oposição àquilo que se estava a viver, a toda a repressão de que éramos objectos. Com a revolução, a opressão terminou, bem como a censura. A partir daí, colaborei com elementos que revelaram o meu júbilo perante a revolução.

AMG - Os cartazes, por exemplo, alguns estão no Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian...

Ileana MoyaAH - E os filmes, também. Essa intervenção política depois perdeu a importância e eu passei a manifestar-me de outras formas. Até aos anos 80, o experimentalismo foi-se desgastando.

AMG - Mas não só participou desse movimento, como foi, com Eugénio Melo e Castro, um dos principais teorizadores da poesia experimental.

AH - Fomos ambos teóricos, embora não tenhamos sido os originadores do movimento, surgido com António Aragão e Herberto Helder, que se desligou rapidamente. Isso não retira a importância a Melo e Castro, figura muito activa nacional e internacionalmente.

AMG - Com António Aragão e E. M. e Castro, Herberto Helder organizou os «Cadernos da Poesia Experimental Portuguesa». Está um pouco esquecida essa intervenção de Helder...

AH - Mas existiu, a documentação e a correspondência comprovam-no. Salette Tavares, uma mulher difícil, interessante, avançada para o seu tempo, também teve uma contribuição extremamente importante, embora não teorizasse. Coube-lhe, igualmente, a sua dose de contrariedade. Melo e Castro tomou mesmo uma posição partidária, entrou para o Partido Comunista, coisa que nunca fiz. Sempre prezei, acima de tudo, a minha independência. O meu partido é o da liberdade, que defende os valores sagrados do convívio das nações e da natureza. Não se pode estar noutro sítio.

AMG - É interessante situar «O Mestre», novela labiríntica, lado a lado com «Os Passos em Volta», de Herberto Helder, e «Rumor Branco», de Almeida Faria. Aproxima-a de quê? Da necessidade de liberdade, ou continua a não saber o que pensa a seu respeito?

AH - Essa novela surge, no princípio dos anos 60, num momento crucial, ao lado dessas outras duas que referiu, e que modificaram o rumo da ficção portuguesa. Só agora se está a reconhecê-lo, no estrangeiro já aconteceu há muito. «O Mestre» foi tema de várias teses, o Brasil acarinhou-o ao longo de décadas.

AMG - Reconhecimento, quarenta anos depois...

AH - Em Portugal, isso não é nada. «O Mestre» - apesar das suas três edições entre nós - tem sido muito estudado no estrangeiro, especialmente pelos grupos ligados a Jacques Lacan. Trata-se de um exemplo único de novela em que o amor é desmontado, desmitificado, completamente desconstruído pelo humor, mas simultaneamente de um texto profundamente trágico. Em causa está a subversão do Poder, a discípula mata o mestre várias vezes...

AMG - Mas também se mata a si própria...

AH - Matando o mestre, mata-se a si própria, essa é a grande lição. A personagem feminina apaixona-se por um indivíduo que não lhe pode corresponder: é homossexual. Nos anos 60, imagine-se. Tratava-se de matar o pai e o pai é o mestre, não o professor, e com conotações metafísicas. Escrevi a novela em dez dias e não fui capaz de lhe acrescentar uma só linha depois. Zanguei-me com os portugueses - mas isso está sempre a suceder-me -, e, nos anos 80, doei a primeira versão do manuscrito à Biblioteca da Universidade de Upsala. Hoje já não me importa que leiam ou não.

AMG - Estamos na realidade sempre a destruir tudo, como se diz na novela?

AH - O mestre responde: «il ya des choses que’il ne faut pas vouloir.» (risos) Aquele mestre era uma alusão a muitas coisas, mas também ao amor impossível. Desejamos sempre aquilo que não podemos ter...

AMG - Há algo de essencial nesse livro sobre a natureza da criação e a questão da imaginação... Diz, a dado momento, que a imaginação serve para matar ou ressuscitar o que nunca teve realmente vida...

AH - Ah, sim... Desde muito cedo, tive consciência da espinha dorsal de tudo o que faço, da ideia de impossibilidade... A ligação entre palavra e desejo... Há uma coerência interna que, mesmo 45 anos depois, me surpreende. Tinha acabado de começar a publicar, e já lá estava o embrião de tudo o que veio depois. Seguir-se-iam o experimentalismo e outros caminhos diversos. Quando escrevi «O Mestre», estava em Paris, em tratamento. Escrevo muito quando estou no estrangeiro, sobretudo as «Tisanas», que têm uma regra fundamental, a do acontecer. Acontece sempre alguma coisa. O real é uma sucessão de aconteceres. Às vezes, não é uma imaginação transformadora, mas uma visão transformadora. Isso, sim, define a imaginação.

AMG - Ao lado da faceta irónica da pintora da escrita que Ana Hatherly é, existe um lado quase infantil. Klee vem à memória...

AH - Com a idade que tenho, pergunto-me como consigo, não digo ser infantil, mas ter aquela genuína idade da criança. A tisana dos anjinhos (349) revela-o, porque eu gostava muito de olhar para as nuvens, redondinhas e luminosas, amontoadas por vastas áreas do azul do céu. E uma vez perguntei: «o que é aquilo? São os anjinhos, responderam-me. E eu acreditei porque era verdade.» Só uma criança é capaz de acreditar. Resta-me esse lado infantil, que tem qualquer coisa de puro, mas isso o verdadeiro criador possui; não sei se posso chamar-lhe inocência. Talvez seja uma maneira limpa de olhar para as coisas.

AMG - A sua obra gira em torno da procura do saber. Acha que «a tragédia do homem é o conhecimento», como escreveu Cioran?

AH - Sou grande leitora e admiradora de Cioran, a quem chamo o meu «primo rigoroso». Quando estive na Roménia, fui à procura dos seus vestígios. Li-o sempre atentamente. O seu desespero ante o sagrado sempre me tocou muito. Era, se quisermos, um filósofo do desespero, de uma lucidez penetrante e talvez um dos escritores que mais me impressionaram, embora não seja um dos autores da minha formação. Leio prefencialmente História da Filosofia, pouca ficção. «A Montanha Mágica» marcou-me imenso, porém. Também vivi num sanatório. Quando escrevi «O Mestre», Ionesco foi igualmente importante. Tudo passa pela manipulação das palavras, sacralizá-las e dessacralizá-las dir-se-ia um processo fundamental.

AMG - «As palavras aproximam (...)/Ou então não:/matam/afogam /separam definitivamente (...), escreve em «O Pavão Negro».

AH - Esse é o poder superior da palavra. Mas voltando a essa ideia do Cioran de que a tragédia do homem é o conhecimento, eu diria que a tragédia está em não se conseguir conhecimento bastante, desculpa Cioran!...

AMG - Talvez Cioran quisesse dizer que o saber traz consigo a perda de ilusão...

AH - Sim ou não, é como as palavras (risos). Pode ser o acréscimo, mas é preciso passar por esse processo dolorosíssimo. A tragédia do humano tem a ver com a incapacidade de não atingir Deus. Nunca chegamos a saber. Quando se procura muito, se estuda muito, quando se chega lá, vê-se que não é nada daquilo. Esta a lucidez normal do que Cioran pensou, só que o diz elipticamente. Chama-se a isso o pecado original. A árvore do saber... Mas o Homem não soube nada, só soube o mal. Foi castigado. Ninguém consegue saciar o desejo. É o cerne de tudo.

AMG - Klee escreveu que não devemos ter medo de nos vermos envolvidos no meio de elementos indigestos. A frase aplica-se-lhe. Entre o doce e o salgado, qual escolhe?

AH - (Risos) Depende das ocasiões. No outro dia na televisão, quando se falava da situação adversa em que a minha obra viveu, durante muitos anos, perguntaram-me quem eram os meus pares. Meus pares, não, meus ímpares, digo. Esses é que são indigestos. Em relação a Klee, admiro-o imenso, até a dimensão dos seus trabalhos. Fez obras muitos pequeninas. Aprendi imenso com isso e entendi qual o seu constrangimento ao sentir-se limitado num espaço, numa dada situação social. Eu, como ele, tive que lutar muito, o que é visível nas obras minúsculas que fiz. Nelas a escrita dir-se-ia quase ilegível. Só se fazem coisas pequeninas com grande desespero.

AMG - A escrita, o pensamento são somente concebíveis enquanto fragmento? Sob a forma de uma explosão ou não?

AH - É sempre fragmento, a criação, insaciável. Faz parte do desejo.

AMG - Tem ultimamente usado o spray, penetrando no universo dos «graffiti». Interessou-lhe o lado subversivo?

AH - Sim, mas já estou a sair daí. Nos últimos quatro anos, trabalhei com spray. Essa explosão dos «graffiti» de rua tem um carácter clandestino, não tem autor, faz-se em grupo, de noite. É algo que a sociedade contempla como uma mácula. O espírito de equipa, a ideia de subversão e o posicionamento político interessaram-me. Não sigo o mesmo percurso que eles, mas tentei reinventar os «graffiti», que são sempre assinatura, voz de alguém. Já domino a técnica, por isso não me interessa mais. Posso usá-la ou não. O importante é tomar posição na altura certa. No momento em que os «graffiti» são proibidos, eu faço!, cumprindo um sentido de transgressão... É o mestre que eu quero matar.

AMG - No seu último livro, «Itinerários», acaba com uma «Carta a Uma Menina que Queria Ser Poeta». É, no fundo uma «Arte Poética»...

Ileana MoyaAH - Que dedico à Matilde Rosa Araújo. É a «História da Menina Louca» do meu primeiro livro. Não sei escrever para crianças, tenho medo. Não tenho pena nem deixo de ter, não sou capaz. Este é o único exemplo. Talvez porque nunca tenha convivido com crianças na infância. Fui mãe e assustei-me imenso com essa responsabilidade. Tocava piano com a minha filha, que também cantava muito bem. A nossa comunhão era a música.

AMG - Regressando a «Itinerários», vejo-os como um mapa...

AH - São percursos. O primeiro poema di-lo: «Na minha oficina herética/o labirinto contraria o linear:/percorre-me/como se fosse uma veia/segura em seus meandros/A não necessidade, o que seria?/que nova desordem criaria?/que outras descobertas?/A fugaz eternidade das ideias-mestras/incessante refaz os jogos da racionalidade/mas o jogo é um itinerário/e a sedução do rigor/recoloca-nos incessante na senda do desejo» Está aqui tudo, é um auto-retrato. Nada é linear. No barroco, também não. Há meandros. Como seria se não houvesse necessidade? O rigor é muito exigente; há essa sedução. E o desejo, sempre o desejo.

AMG - «Escrever é querer descobrir o próprio vulto». Isso basta-lhe?

AH - Sou obrigada a isso.

AMG - Sempre num caminho de instabilidade?

AH - Como o melro que na minha varanda salta pelo jardim num hotel de cinco estrelas: «(...) Flâneur jovial/seu canto/enche de encanto o meu dia/Preciosa ilusão de alegria/como criança saltando à corda/brinca/com as leis do fim». Tenho uma paixão pelos melros.

AMG - Entre a vida e a morte, o princípio e o fim. Talvez por isso a citação de Keats que surge nos dois últimos livros: «Itinerários» e «O Pavão Negro»: «Pensar é encher-se de tristeza». Porquê? Tem a ver com dimensão de finitude?

AH - Talvez, e com a ideia de sofrimento. Fui uma grande leitora de Keats. Talvez seja o que diz Cioran, essa aspiração ao conhecimento nunca alcançado: «Pensando em ti eu sofro: a prática das coisas/é um penoso mistério/uma veleidade/no breve travo da memória», escrevo em «Itinerários». Afinal, estes itinerários são mais pungentes do que eu pensava! (risos).

AMG - Aparentemente há uma leveza nesse livro, mas é trágica. Na sua obra, tudo está labirintica e ironicamente ligado. Há uma consciência da morte (a dos outros e a nossa) e a lucidez de saber que o poeta se transforma no seu próprio espólio...

AH - Eu sei que «Caminho só/ímpar/viúva/Um pombo cor de cobre aproxima-se:/olha-me um instante/e depois afasta-se/para sempre.» («Itinerários») Já na «Rilkeana», dizia: «caminho solitária/apoiada só na minha ironia» (risos). O que vem ao de cima é sempre o sentimento trágico da vida, porque nunca nos saciamos. Depois de amarmos, sofrermos, não temos nada. Diante de nós, o desaparecimento.

AMG - «Nunca mais se ouve o que é inaudível»?

AH - O invisível, o inaudível... Mas não queria dar a ideia de uma pessoa triste. Sou lúcida, isso sim, dinâmica, vital, tenho uma enorme energia física e de acção no real.

AMG - É intolerável a «intensidade do sentir?»

AH - Sinto intoleravelmente. Sinto com uma intensidade tal que as pessoas se assustam, por isso não deixo que se aproximem muito e desapareço sempre primeiro. Sou muito atenta, vejo as pessoas excessivamente, registo tudo. Tenho uma câmara invisível, depois afasto-me e, no meu «replay», apanho as coisas. Não me esqueço. Quando me tenho de separar de alguma coisa, fico doente, porque não me sai da memória. Da beleza também. Um pôr de sol dá cabo de mim por dias inteiros.

AMG - Que distância vai da Ana Hatherly de «Eros Frenético» à Ana Hatherly dos últimos livros?

AH - Trinta e tantos anos. Muita coisa mudou. O poema que dá o título ao livro «Eros Frenético» teve um impacte negativo tremendo. As pessoas estavam habituadas a falar do amor num enquadramento romântico, do século XIX. Esse texto é erótico, mas a imagística é a da máquina. Isso ofendeu muita gente, como se o corpo não fosse uma máquina, uma máquina sofredora. O poema é intensíssimo.

AMG - E subverte o romantismo: «Eles estavam ali em frente um do outro/no silêncio da sua morte/ocupando diferentes espaços»...

AH - Há sempre essa solidão, porque não se ama nunca, só se deseja, como digo numa tisana. Há subversão nesse livro, mas com outra forma de sentir, utilizando novas metáforas. Fui atacada, mas de uma maneira ainda mais violenta quando peguei na Leonor («Leonorana»). Adoro Camões, admiro-o e conheço-o, ensinei-o durante vários anos na faculdade, mas quis desmontar o mito. O país não perdoou, só perdeu com isso.

AMG - Não há vanguarda sem tradição...

AH - E o meu mal é conhecer relativamente bem a tradição cultural portuguesa, tenho, portanto, consciência da responsabilidade de a continuar, sabendo que há tantos gigantes. Lanço-me, e nisso sou como os barrocos, não tenho medo. E depois sofro as consequências.

AMG - Como viveu a criadora no mundo académico?

AH - Só fui para a Universidade como professora depois do 25 de Abril. Já tinha uma carreira como escritora subversiva e fui aceite com alguma dificuldade. Escolhi uma área proibida de especialização, considerada das menos notáveis da cultura portuguesa. Muita gente se esquece que Padre António Vieira e D. Francisco Manuel de Mello são os exemplos máximos da escrita do barroco em Portugal. As pessoas passam por cima disso. Entusiasmei-me, apaixonei-me e dediquei-me completamente, tendo conseguido, apesar de tudo, merecer algum respeito. Quando editei a revista «Claro-Escuro», ficou bem evidente que havia uma dimensão que as pessoas eram obrigadas a respeitar. Isso facilitou a minha inserção. Mas durante muito tempo, não podia sequer mencionar o meu trabalho experimental. Tudo o que tinha feito décadas antes de entrar para a Universidade, prejudicava a minha imagem. Diziam que eu era demasiado original. Isso tudo já passou e a minha alegria é ter conseguido formar alunos, hoje meus discípulos, que me estimam. Para eles trabalhei.

AMG - Enquanto criadora, sentiu-se sempre mulher? Há, a seu ver, uma criatividade especificamente feminina?

AH - Senti-me sempre profundamente mulher. A mulher é muito diferente do homem. O criador não tem sexo, porém, a criatividade não tem nada a ver com isso: há, no entanto, um carácter específico da personalidade feminina. Nisso sou exemplo típico. As mulheres são mais audaciosas. Mesmo caladas, e se analisarmos bem a História, são audazes. A mulher é muitíssimo mais forte, e eu sou uma mulher muito forte, porque faço da minha fragilidade força.

AMG - Em «O Mestre», escreve que muitas vezes os seres são claros e translúcidos por serem primários e que, à medida que vão evoluindo, tornam-se opacos. Nesta fase da sua vida e obra, sente-se como?

AH - Para mim, sou transparente, para os outros, mais opaca, porque têm dificuldade em abarcar a totalidade das minhas facetas. Não diria que sou opaca, mas poliédrica. Nunca ninguém tem a certeza absoluta de que lado vou estar. Nem eu.

AMG - Bataille escreveu que poesia que não se eleva até à impotência - é vazio de poesia. Concorda?

AH - A afirmação pode ser lida de várias maneiras. Se eu disser que não consigo atingir o sublime, isso também pode ser entendido como forma de impotência. No fundo, é o problema do conhecimento; nunca conseguimos atingir o limite do poder do criativo. Nesse aspecto, há sempre falta.

AMG - Qual é, para si, o maior motivo de riso?

AH - Há muitas formas de riso e de rir. Entre o rir e o sorrir, existe um espaço extremamente complexo. Não cultivo o riso, cultivo a ironia. A ironia não chega a ser riso, também não é sorriso, estando mais próxima do sorriso do que o riso. O riso, subjacente a alguns dos meus textos, é uma forma de ironia, manifestação pouco comum na tradição portuguesa. Quando se diz rir em português significa algo em que não me incluo de maneira nenhuma, embora possa rir com os amigos. Existem alguns sorrisos na minha obra, riso não.

AMG - Vive rodeada de quê? De palavras?

AH - Também.

Uauuu!!! Li esta entrevista com a artista, escritora, mulher, poeta, professora Ana Hatherly no livro Ana Hatherly - A idade da escrita e OUTROS POEMAS publicado no ano de 2005 pela Editora Escrituras, coleção Ponte Velha, cuja entrevista foi realizada por Ana Marques Gastão. As falas da autora esclarecem muitas de nossas questões sobre o fazer arte e viver. Muito interessante o seu amor às formas da expressão de nossos anseios e desejos e "ao profundo empenhamento do corpo e da alma. Essa é a grande criação que nos emocionou ao longo dos tempos."

E continua mais adiante na entrevista: "O sagrado é a relação com o Outro, o tal Outro invisível, aquele que nunca se vai encontrar."

E, hoje, pesquisando no google encontrei a entrevista inteirinha e ilustrada no site da Revista Agulha; foi um achado.

Edvard Munch - um grito numa ponte

O Munch que 'O Grito' quase fez esquecer

Megaexposição na França amplia o reconhecimento do grande pintor norueguês que viveu na Alemanha

07 de abril de 2010 | 5h 00

Luiz Carlos Merten - O Estado de S. Paulo

Cinéfilo que se preze conhece, e muito bem, "O Grito". O quadro de Edvard Munch - pintor norueguês que viveu na Alemanha - mostra uma figura deformada, pouco mais do que um vulto, que lança um grito numa ponte. Pintado no século 19, os historiadores garantem que surgiu como uma reação do autor ao impressionismo. Ao desespero da figura soma-se o apocalipse de céu e terra que se misturam numa massa única e caótica, em cores de fogo. "O Grito" virou um marco não só das artes visuais, mas do pensamento. Muitos críticos veem no quadro de Munch a origem do movimento expressionista, que marcou o cinema alemão nas primeiras décadas do século 20. Em Hollywood, a incorporação do claro/escuro do expressionismo à vertente policial produziu o filme noir.

Revelação da alma feminina em 'Mulher Chorando Frente ao Leito', quadro de 1930. Reprodução

Munch ficou marcado pelo "O Grito". A obra é emblemática, por certo, mas não representa o conjunto da obra do autor. Uma grande exposição na Pinacoteca de Paris visa a lançar nova luz sobre esse artista tão mítico quanto misterioso. Chama-se "O Anti-Grito" (L’Anti-Cri) e vai até 18 de julho. A ideia é restituir a verdadeira dimensão de Munch, que teria sido adulterada pela exagerada notoriedade de sua obra mais conhecida. Na Noruega, ele é considerado o maior pintor de todos os tempos. Pode parecer exagero, mas o mérito da mostra da Pinacoteca, ao propor uma nova leitura da obra do artista, recupera o Munch combativo que, mais do que qualquer outro pintor, foi um homem ‘contra’. Com uma lógica verdadeiramente anarquista, ele se opôs ao impressionismo, ao naturalismo e ao simbolismo para criar uma forma de expressão contrária a tudo aquilo que havia recebido como modelos de sociedade e arte desde a infância. Suas relações mais profundas eram com a literatura e a poesia, e ele se experimentou no cinema, que engatinhava quando já era um pintor consagrado.

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Consagrado, sim, mas nem sempre palatável. Nascido em 1863 e morto em 1944, Munch perdeu a mãe muito jovem, vítima de tuberculose. A irmã de quem era mais próximo morreu - também de tuberculose - e o pai, deprimido, se refugiou no puritanismo religioso. Para complicar, a família passou a enfrentar dificuldades financeiras. Tudo isso marcou o jovem Munch e se refletiu na sua obra. Em 1880, depois de certa indecisão - queria ser arquiteto -, ele optou pela pintura e entrou para a Escola Real de Desenho de Kristiania, que só seria batizada como Oslo em 1926. Seus primeiros trabalhos foram, essencialmente, naturezas-mortas, cenas da vida doméstica e paisagens urbanas. Ligou-se a Christian Krohg, pintor e escritor naturalista que o iniciou na vida boemia da cidade.

Tela do pintor norueguês nascido em Loton, em 1863, e morto em Ekely, em 1944. Foto: Reprodução

O elo. A primeira exposição ocorreu em 1889 e uma bolsa de estudos lhe permitiu se estabelecer em Paris, onde se instalou no ateliê de Léon Bonnat, pintor realista que não conseguiu convencê-lo a aderir a seus princípios. Nos anos seguintes, Munch viajou muito - Nice, Berlim, Florença, Roma. A cor o fascinava; as novas tecnologias, também. Ele transferiu fotografia e cinema para o interior de suas telas e se tornou cada vez mais transgressivo ao suprimir os limites entre suportes e técnicas em suas gravuras, desenhos, pinturas, esculturas e colagens. Inscrevendo-se na linhagem de Gustave Courbet e William Turner - também objeto de outra grande retrospectiva em Paris -, Munch pode ser, ou é, o elo que une os arautos da modernidade, de Pablo Picasso a George Braque e Jean Dubuffet e Jackson Pollock.

A exposição da Pinacoteca ocupa os três andares do prédio. "O Grito" - a tela famosa de 1893 - é a grande ausente da mostra, embora tudo a ela se relacione. Foram anos de pesquisa e persuasão - o acervo que a Pinacoteca agora apresenta são as obras de Munch em poder de colecionadores particulares, reunidas pelo curador Dieter Buchhart, reconhecido como a maior autoridade mundial sobre o artista. Até aqui, o Museu Munch e a Galeria Nacional de Oslo haviam sido os grandes expositores da obra do pintor e gravurista. É curioso como as gravuras de Munch se assemelham às de Marcello Grassmann e Oswaldo Goeldi. Os artistas brasileiros foram por ele influenciados ou se trata de um desses casos de sincronicidade tão frequentes na arte, quando diferentes artistas produzem obras gêmeas? Os tesouros que Paris revela estavam reservados, até agora, somente aos olhos de alguns poucos. E, a despeito das inovações e ousadias técnicas e estéticas, o que mais comove nestas cenas - nas Madonas, cenas eróticas e retratos - é a exploração do sentimento humano. Poucos artistas terão sido tão viscerais. Enquanto seus contemporâneos investigavam a natureza e a representação social do mundo, Munch dissecava a ‘alma’. Sua obra é um prato cheio para quem se dispuser a analisá-la com as ferramentas da psicanálise. Como se interrogava o próprio Munch, o que é a arte senão um reflexo das insatisfações da vida?


Tópicos: Munch, Arte & lazer, Variedadades

Este post eu o fiz a partir de arquivo encaminhado pelo amigo Universo, cujo blog é bastante diversificado e interessante. Vale a pena passear por lá.

A matéria originalmente foi publicada no jornal O Estado de São Paulo e assinada por Luiz Carlos Merten, conforme identificação inicial do post.