sexta-feira, 12 de março de 2010

Mistérios Sanguíneos

“Imagine um ser que sangra mas não está ferido. Imagine um ser que sangra mas não morre. Será uma criatura mágica, mística, ou apenas uma mulher? Ou ambas as coisas? Será que tal criatura pode ser 'meramente' mulher? Há aqui um certo mistério a respeito do qual os homens nada sabem e as mulheres devem saber alguma coisa:
Como pode um homem saber o que é a vida de uma mulher?”
Este fragmento de texto foi digitado a partir do primeiro parágrafo do livro A tecelã – Ensaios sobre a Psicologia Feminina Extraídos dos Diários de uma Analista Junguiana, de Barbara Black Koltuv e publicado pela Editora Cultrix, São Paulo, 1997, 12ª ed., p. 11.
O propósito da transcrição do texto é de trazer à luz um pensamento mais profundo para além da pequenez de muitos dos pensamentos e atitudes que temos umas para com as outras; assim como em relação de gênero entre mulher e homem. Está-se buscando somente um que-fazer para nos reintegrarmos em profundidade a fim de resgatar a Liberdade mesmo quando escolhemos o Amor.
No capítulo 8, Criatividade e Realização, a autora começa o ensaio com uma parábola denominada Presentes da Vida, que foi escrita por Olive Schreiner, uma feminista sul-africana, em 1890.
“Eu vi uma mulher que dormia. Em seu sono, ela sonhou que a Vida estava em pé diante dela e segurava um presente em cada mão – numa o Amor, na outra a Liberdade.
E ela disse para a mulher: “Escolha!”
E a mulher esperou muito tempo; então respondeu: “Liberdade!”
E a Vida disse: “Escolheste bem. Se tivesses dito “Amor", eu teria oferecido aquilo que me pediste: e eu te abandonaria e não mais retornaria. Agora chegará o dia em que retornarei. Nesse dia, trarei os dois presentes numa só mão.
Eu ouvi a mulher rir durante o sono.
O sentido da vida que nos força a escolher entre o amor e a liberdade – ou, em termos modernos, uma carreira, uma profissão, um profundo envolvimento com nosso trabalho criativo – tem estado conosco há muitos anos.”
Alguns parágrafos à frente, a autora cita um ensaio de Jung onde ele escreve, em 1927, que
“É função de Eros unir o que Logos dividiu. A mulher de hoje depara-se com uma tremenda tarefa cultural – talvez seja o amanhecer de uma nova era.”


Imagem: Leda Lucas

São Paulo, 12 de março de 2010
Leda Maria Lucas

Super-Homem, a Canção (1979)

Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria

Que o mundo masculino tudo me daria

Do que eu quisesse ter

Que nada, minha porção mulher que até então se resguardara

É a porção melhor que trago em mim agora

É o que me faz viver

Quem dera pudesse todo homem compreender, ó mãe, quem dera

Ser o verão no apogeu da primavera

E só por ela ser

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um Deus o curso da história

Por causa da mulher

Quem sabe o super-homem venha nos restituir a glória

Mudando como um deus o curso da história

Por causa da mulher

Fonte: http://letras.terra.com.br/gilberto-gil/46246/ - postado a partir do Google.

A INSPIRAÇÃO

O busto grande, quadris largos, olhos castos, castanhos e sonhadores. Uma vez ou outra exclamava. Disse com ar alegre, aflito, muito rápido como que para que não a ouvissem totalmente:
– Acho que eu não podia ser escritora, sou tão... tão resumida!
Um dia, porém, como escondida de si mesma, teve uma inspiração e anotou no caderno de despesas algumas frases sobre a beleza do Pão de Açúcar. Só algumas palavras, ela era resumida. Muito tempo depois, numa tarde em que estava só, lembrou-se de que escrevera alguma coisa sobre alguma coisa – sobre o Corcovado? Sobre o mar? Só se lembrava de que havia usado as palavras "beleza muito pitoresca". Foi procurar o antigo caderno de despesas.  Por toda a casa. Móvel por móvel. Abria caixas de sapatos na esperança de ter sido secretiva quanto a sua inspiração a ponto de guardar o escrito revelador de sua alma numa caixa de sapatos. Teria sido uma boa ideia. Aos poucos a sufocação crescia, ela passava a mão pela testa – agora era mais do que o caderno de despesas que ela estava procurava, procurava o que a inspiração lhe ditara, vejamos, paciência, procuraremos de novo. O que estaria escrito no caderno? Lembrava-se de que era algo muito espiritual sobre alguma coisa pitoresca. Pitoresco era para ela o máximo. Procuremos, é questão de força de vontade, é questão de ir pegá-lo. Que desastre – sentia imóvel no meio da sala, sem direção, sem saber onde mais procurar – que desastre. A casa calma à tarde. E em alguma parte havia uma coisa escrita, um pensamento íntimo, disso tinha certeza. Desabotoou afogueada a gola da blusa: não achar seria perder alguma coisa muito sua. Não desanime, dizia-se, procure entre os papéis, entre as cartas, entre as raras notícias que lhe mandavam. Ah, raciocinava ilogicamente, tivessem-lhe escrito mais e ela teria onde procurar. Mas sua vida ordenada era exposta, tinha poucos esconderijos, era limpa. O único esconderijo era a sua alma que uma vez se manifestara no caderno de despesas. Mas que felicidade ter móveis, caixas onde encontrar por acaso.
Uma vez ou outra procurava de novo. De vez em quando se lembrava do caderno de despesas num sobressalto de esperança. Até que, depois de alguns anos, um dia ela disse, modesta:
– Quando eu era mais moça, eu escrevia.

Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, ps. 440 e 441.

Crônica: Clarice Lispector
Imagem: Google - material de pesquisa sobre uma artista portuguesa.