terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Traje

ODE AO TRAJE


Traje, cada manhã sobre

uma cadeira esperas

que a minha vaidade,

o meu amor, a minha esperança,

o meu corpo, te encham.

Logo

que saio do sono,

me despeço da água,

entro em tuas mangas,

as minhas pernas procuram

o buraco das tuas pernas

e assim cingido

pela tua infatigável fidelidade

saio caminhando pelo prado,

entro na poesia,

olho através das janelas,

as coisas,

os homens, as mulheres

os factos e as lutas

vão-me formando,

enfrentando-me,

lavrando-me as mãos,

abrindo-me os olhos,

gastando-me a boca

e assim,

traje,

vou-te formando também,

puindo-te os cotovelos,

rompendo-te os fios,

e assim a tua vida cresce

à imagem da minha vida.

Ao vento

ondulas e ressoas

como se fosses a minha alma,

nos piores momentos

colas-te

aos meus ossos

vazio, de noite

a escuridão e o sono

povoam com seus fantasmas

as tuas asas e as minhas.

Pergunto-me

se um dia

uma bala

do inimigo

te deixará uma mancha do meu sangue

e então

morrerás comigo

ou talvez

não seja tudo

tão dramático

como parece,

e irás adoecendo

comigo, traje,

envelhecendo

comigo, com o meu corpo

e juntos

entraremos na terra.

Por isso

todos os dias

te saúdo

com reverência e logo

me abraças e logo te esqueço,

porque somos um só

e assim continuaremos sendo

frente ao vento, na noite,

nas ruas ou na luta

um só corpo

talvez, talvez, imóvel algum dia.


(Pablo Neruda)


In: Odes Elementares – Poesia do Século XX. Tradução: Luis Pignatelli. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1977, p. 289 – 291.


Imagem: Leda Lucas - da VIII Exposição de Modas Sigbol, na estação de trem Parque Primavera, em São Paulo.
Poema: Pablo Neruda (poeta chileno)

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