ODE AO TRAJE
Traje, cada manhã sobre
uma cadeira esperas
que a minha vaidade,
o meu amor, a minha esperança,
o meu corpo, te encham.
Logo
que saio do sono,
me despeço da água,
entro em tuas mangas,
as minhas pernas procuram
o buraco das tuas pernas
e assim cingido
pela tua infatigável fidelidade
saio caminhando pelo prado,
entro na poesia,
olho através das janelas,
as coisas,
os homens, as mulheres
os factos e as lutas
vão-me formando,
enfrentando-me,
lavrando-me as mãos,
abrindo-me os olhos,
gastando-me a boca
e assim,
traje,
vou-te formando também,
puindo-te os cotovelos,
rompendo-te os fios,
e assim a tua vida cresce
à imagem da minha vida.
Ao vento
ondulas e ressoas
como se fosses a minha alma,
nos piores momentos
colas-te
aos meus ossos
vazio, de noite
a escuridão e o sono
povoam com seus fantasmas
as tuas asas e as minhas.
Pergunto-me
se um dia
uma bala
do inimigo
te deixará uma mancha do meu sangue
e então
morrerás comigo
ou talvez
não seja tudo
tão dramático
como parece,
e irás adoecendo
comigo, traje,
envelhecendo
comigo, com o meu corpo
e juntos
entraremos na terra.
Por isso
todos os dias
te saúdo
com reverência e logo
me abraças e logo te esqueço,
porque somos um só
e assim continuaremos sendo
frente ao vento, na noite,
nas ruas ou na luta
um só corpo
talvez, talvez, imóvel algum dia.
(Pablo Neruda)
In: Odes Elementares – Poesia do Século XX. Tradução: Luis Pignatelli. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1977, p. 289 – 291.