quarta-feira, 17 de março de 2010

Estou me a vir


"(...) Escrevo ao correr das palavras.
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente?
No fundo de tudo há a aleluia.
Este instante é. Você que lê é.
Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante numa frescura frígida. Minha vida vai ser longuíssima porque cada instante é. A impressão é que estou por nascer e não consigo.
Sou um coração batendo no mundo.
Você que me lê que me ajude a nascer.
Espere; está ficando escuro. Mais. Mais escuro.
O instante é de um escuro total.
Continua.
Espere: começo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere – pois sairei desta escuridão onde tenho medo, escuridão e êxtase. Sou o coração da treva.
O problema é que na janela de meu quarto há um defeito na cortina. Ela não corre e não se fecha portanto. Então a lua cheia entra toda e vem fosforescer de silêncios o quarto: é horrível.
Agora as trevas vão se dissipando.
Nasci.
Pausa.
Maravilhoso escândalo: nasço.
Estou de olhos fechados. Sou pura inconsciência. Já cortaram o cordão umbilical: estou solta no universo.
Não penso, mas sinto o it. Com olhos fechados procuro cegamente o peito: leite grosso. Ninguém me ensinou a querer. Mas eu já quero. Fico deitada com olhos abertos a ver o teto. Por dentro é a obscuridade. Um eu que pulsa já se forma. Há girassóis. Há trigo alto. Eu é.
Ouço o ribombo oco do tempo. É o mundo surdamente se formando. Se eu ouço é porque existo antes da formação do tempo. 'Eu sou' é o mundo. Mundo sem tempo. A minha consciência agora é leve e é ar. O ar não tem lugar nem época. O ar é o não-lugar onde tudo vai existir. O que estou escrevendo é música do ar. A formação do mundo. Pouco a pouco se aproxima o que vai ser. O que vai ser já é. O futuro é para frente e para trás e para os lados. O futuro é o que sempre existirá. Mesmo que seja abolido o Tempo? O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser. A trombeta dos anjos-seres ecoa no sem tempo. Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o chão que é terra. O resto é ar e o resto é lento fogo em perpétua mutação. A palavra “perpétua” não existe porque não existe o tempo? Mas existe o ribombo. E a existência minha começa a existir. Começa então o tempo?
Ocorre-me de repente que não é preciso ter ordem para viver. Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço.
Ainda não estou pronta para falar em 'ele' ou 'ela'. Demonstro 'aquilo'. Aquilo é lei universal. Nascimento e morte. Nascimento. Morte. Nascimento e – como uma respiração do mundo.
Eu sou puro it que pulsava ritmadamente. Mas sinto que em breve estarei pronta para falar em ele ou ela. História não te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It é mole e é ostra e é placenta. Não estou brincando pois não sou sinônimo – sou o próprio nome. Há uma linha de aço atravessando isto tudo que te escrevo. Há o futuro. Que é hoje mesmo.”

(Autora: Clarice Lispector)

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, 4ª ed., ps. 36 a 39.

Fragmento da obra Água Viva, cujo texto é classificado como ficção não pertencendo portanto a nenhum gênero narrativo. Mas sim à Literatura.
Esta obra de Clarice 'caro leitor: não há que lê-la; ou melhor, há que lê-la sim, ao preço de queimar-se.'
Postei este texto porque, para mim, a Literatura é uma veemente forma de resposta às indagações mais fundas do ser humano.
Ela chega, abre as cortinas e queda-se à espera.

Imagem da criança: Google
Imagem da água viva: Leda Lucas


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